Os Judeus Não Contam

Será que nas sociedades ocidentais, onde está interiorizado que todas as formas de discriminação têm de ser combatidas como racismo, misoginia, homofobia, transfobia, tratamos de forma distinta o antissemitismo?

“Os Judeus Não Contam” de David Baddiel é um pequeno livro intencionalmente provocador. Será que nas sociedades ocidentais, onde está interiorizado que todas as formas de discriminação têm de ser combatidas como racismo, misoginia, homofobia, transfobia, tratamos de forma distinta o antissemitismo? Será que consideramos o antissemitismo uma forma menos relevante de discriminação? Será que consideramos que ser judeu na atualidade não é algo que implique uma real dificuldade na vida diária e como tal não comparável com a experiência de ser negro ou um homossexual? Será o antissemitismo um racismo de 2ª categoria ou nem sequer deveria ser considerado racismo?

Sim, este livro não tem como intenção alertar contra qualquer grupo de extrema-direita que quer atacar judeus, mas sim à sociedade em geral e em especial aqueles que sendo sensíveis ao tema da discriminação excluem o antissemitismo da sua lista. Livro O autor David Baddiel, sendo um judeu britânico sente-se à vontade para falar deste tema e recorda-nos um episódio de 2008 num campo de futebol onde jogava o Chelsea, e quando foi revelado o resultado do Tottenham Hotpurs (outro clube rival da cidade de Londres) que estava a perder e então a multidão contente gritou “odiamos o Tottenham! Yiddo!”. Para quem não sabe o Tottenham Hotpurs fica numa zona de Londres onde vivem muitos judeus e o Yiddo como já devem ter percebido é uma forma ofensiva de se dirigir a judeus. Não foi inocente o autor trazer este episódio e está sempre a bater nesta tecla: o antissemitismo não é visto como uma forma de racismo. Muito do livro repete este tipo de exemplos em que antissemitismo é desvalorizado por aqueles que se dizem campeões do combate à discriminação e até em alguns pontos sensíveis atuais ex: “um ator não trans pode fazer um papel trans?”, recorda-nos que nunca existiu uma discussão “um não judeu pode fazer um papel de um judeu?“

Nem sempre concordo a 100% com a visão do livro, mas a intenção é refletirmos sobre o mesmo. Também temos de contextualizar que na Inglaterra onde vive o autor vive o próprio Partido Trabalhista (de esquerda) foi acusado de antissemitismo em algumas declarações.

Como tal após ler o livro sintetizo em 2 pontos-chave as minhas linhas de reflexão:

1) Será que a ideia preconceituosa dos judeus fazerem parte da elite da sociedade, impede que os vejamos como passíveis de discriminação?

Esta é uma daquelas questões em que hesitamos em responder principalmente se pertencemos a uma minoria como é o meu caso. Não deveria precisaria de explicar, por exemplo, que quem é de origem africana sempre se habituou a ver como pertencente à classe mais pobre e a sentir exclusão social e racismo. De modo contrário, a imagem que temos de um judeu que viva nos países ocidentais, é sempre de alguém bem integrado na sociedade, com elevado nível de educação escolar e financeiramente sem dificuldades. Associamos a ideia de ser discriminado com o ser prejudicado no dia-a-dia nas pequenas coisas. E imediatamente como raciocínio rápido não pensamos como exemplo credível, alguém dizer que viver como judeu lhe trouxe reais dificuldades na sua vivência diária. Esta é uma abordagem rápida e inconsciente, não implica e não deve implicar, que não façamos um esforço maior para perceber se faz sentido.

Nós não temos praticamente judeus em Portugal e com tal parece-nos estranha a ideia do antissemitismo, embora nem sempre percamos um segundo a pensar porque não existem judeus em Portugal. Pode-nos parecer estranho nos dias de hoje que a 19 de Abril de 1506 nas ruas de Lisboa andassem milhares de pessoas a matarem indiscriminadamente judeus e que no final 3 a 4 mil pessoas tenham sido massacradas. O Holocausto Judeu da 2ª Guerra Mundial teve um efeito negativo que foi relativizar o antissemitismo como algo específico e apenas especifico de movimentos nazis. O antissemitismo foi algo constante em toda a história europeia e não especifica de um país ou de um período histórico. É extremamente importante relembrar esta ideia-chave. memorial massacre judeus

No caso português, um bom filme para se rever, é o 1618, que recorda o período de perseguição aos cristãos-novos, na prática judeus forçados formalmente a tornarem-se cristãos. Vemos os traços do que tipicamente se atribuíam aos judeus por quem os odiava: ricos, gananciosos, pertencentes à elite. Os judeus sempre tiveram muitas restrições no que podiam fazer do ponto de vista económico incluindo posse de terra e muitos tiveram de ser criativos para sobreviverem sendo empurrados para o comércio ou atividades financeiras muitas deles pela sua natureza mais lucrativas. O contraste com os judeus que viviam nos territórios árabes não podia ser mais extremo, sendo que foi essencialmente na Europa onde enfrentaram sucessivamente massacres, sendo considerados culpados ou bodes expiatórios para todos os males que ocorriam periodicamente, como por exemplo as doenças.

Resumindo pode ser muito discutível a ideia de os judeus pertencerem a uma classe social abastada e David Baddiel recorda-nos um estudo efetuado que refere que os judeus representam apenas 1,7% dos milionários mundiais, mas tal deveria ser totalmente irrelevante numa ótica de discriminação. Se isto levar a massacres indiscriminados, qual a importância do salário da pessoa assassinada num crime de ódio?

Num mundo onde cada vez mais a desigualdade aumenta, uma consequência será a recuperação da velha ideia da luta de classes. Teremos de resistir de todo em colocar grupos étnicos ou nacionais no lado errado dessa luta de classes, pois o resultado já sabemos da história.

Muitos podem achar ridículo o exemplo que vou dar a seguir, mas para quem se habituou há mais de 40 anos a ouvir a frase: “De onde és?” apesar de ter nascido em Lisboa, incomoda-me o teor de alguns comentários nas redes sociais de pessoas de esquerda sobre os estrangeiros que compram casas de elevado valor e como tal inflacionam os preços de mercado. As pessoas de direita provocam-nas dizendo: “Mas se for um americano ou um alemão já não é xenofobia?” ao que respondem “Não é a mesma coisa porque estão numa situação de privilégio”. Volto a referir que este tipo de discurso é perigoso e o melhor exemplo histórico é o dos judeus

2) Será o tema de Israel o que realmente motiva a hostilidade aos judeus atualmente? Será que criticar Israel se confunde com criticar judeus?

Mais um tema muito complicado para se responder e fortemente armadilhado e em que podemos ser acusados facilmente de antissemitismo. Se existe um tema que une de forma clara a esquerda são as críticas ao tratamente dado pelo estado de Israel aos palestinianos. Mas aqui também temos de ter o cuidado de definir bem os limites do que se defende e sobre o que não se deve defender.

Vou começar por dar a minha opinião. O processo de criação do Estado de Israel foi para mim ilegítimo. Vou explicar o que quero dizer com isto e o que não quero dizer com isto. Os judeus que viviam na Europa tinham todo o direito em viver num local onde não pudessem ser perseguidos. Não tinham é o direito de o fazer à custa de outros povos. Neste aspeto o sionismo como projeto não fazia sentido. Sendo assim, quando os britânicos após a 1ª Guerra Mundial permitiram a emigração em massa de judeus para a Palestina (território que passaram a governar após o colapso do Império Otomano), deveriam saber que estariam a criar um problema onde antes não existia. israel

A criação de um estado judeu na Palestina tem na sua génese este problema: só é possível com uma esmagadora maioria judaica. Se em 1948, data da criação do estado de Israel, tal foi possível com uma limpeza étnica, quando em 1967 conquistaram a Cisjordânia e Faixa de Gaza após terem ganho a Guerra dos Seis Dias contra os vizinhos árabes, tal já não foi possível. O estado de Israel ficou aí com um problema: não podia dar os mesmos direitos aos palestinianos que vivem na Cisjordânia e Faixa de Gaza pois Israel deixaria de ser um estado maioritariamente judeu e como tal permaneceu este sistema duplo onde os palestinianos não podem ter um Estado e são tratados como pessoas de segunda. Mas se me perguntarem: “Mas estás contra a existência do Estado de Israel?” eu respondo “O estado de Israel já existe, deve continuar a existir, mas Israel deve deixar criar um Estado Palestiniano”

Tive de fazer este desvio pela história de Israel para mais facilmente expor os equívocos. Não é correto equivaler judeus=israelitas. Os judeus não são responsáveis pelas ações do Estado de Israel. Quando um judeu reclama sobre antissemitismo não temos de perguntar: “Mas o que pensas das ações do Estado do Israel?” Mas esta equivalência também é forçada, de forma ilegítima, pelos próprios líderes israelitas (ex. Benjamin Netanyahu) que gostam de apresentar Israel como um projeto coletivo de todos os judeus e pelo qual todos os judeus devem lutar e responder. Mas novamente não cair nesta armadilha. Pode-se e deve-se criticar as ações de Israel, mas sem generalizar as críticas ao povo judaico. Criticar Israel não é de todo antissemitismo, mas é fácil a partir daí dar o passo fatal para o antissemitismo

Conclusão:

Mesmo que ache o livro escrito num tom muito provocador, tem justamente esse condão de nos forçar a refletir se de facto o antissemitismo não é visto como uma forma de discriminação menor. Também nos faz refletir se associar de forma muito rígida conceitos de luta de classes à discriminação pode deixar injustamente pessoas de fora. Também e para quem está mais à esquerda é necessária uma abordagem muito compartimentada nas críticas justas ao Estado de Israel, não deixando que isso extravase para uma crítica geral aos judeus