Senti necessidade de ouvir na integra a conferência de imprensa da Comissão Independente que analisou os abusos de crianças na Igreja Católica, como forma de respeito pelas vítimas. Vítimas estas que dolorosamente e muitas vezes em silêncio guardaram este passado de abusos sofridos e que só agora tiveram uma sociedade que os quisesse ouvir com vontade de finalmente fazer alguma coisa. As minhas reflexões:
1) Esta é uma tragédia de dimensões que ultrapassa tudo o que poderíamos imaginar
A longa apresentação da Comissão Independente foi especialmente dolorosa de ouvir com a inclusão dos excertos dos depoimentos das vítimas. O facto da linha de denúncia de abusos no 1º dia ter recebido mais 50 testemunhos denota bem o grau de sofrimentos que muitos suportaram em silêncio todos estes anos. A Comissão acabou por apurar 512 testemunhos validados que por extrapolação de vítimas associadas a estas denúncias chegou a um valor mínimo de 4815 vítimas. Ao contrário de outros países existiu quase paridade entre as vítimas (52,7% masculino e 47,2% feminino), embora os abusadores foram 96% eram género masculino e 77% padres. A idade média foi de 11,2 anos e 25 casos foram enviados para o Ministério Público, tendo sido excluídos os casos prescritos ou que a vítima não quis perder o anonimato.
“É confuso ser educada a ver um padre como um ser especial, bom, de confiança, dar essa confiança de criança num grupo de jovens e afinal não ser nada como nos fizeram sempre crer que era. Afinal o padre é o que mente, abusa, apalpa, beija”-Testemunho de vítima
Um dos aspetos mais trágicos destes relatos é resultarem do aproveitamento de uma situação de poder, com manipulação das vítimas no sentido de aquilo que faziam não ser errado e que a denúncia era um pecado. Muitas vezes as próprias famílias preferiam não acreditar que aquilo aconteceu e que foi apenas má interpretação das suas crianças. Estas crianças ficaram marcadas para vida, com complexos de “culpa” e “pecado” católico, com uma relação desiquilibrada com a sexualidade e um incomensurável sofrimento que carregam para o resto das suas vida. E tragicamente pelo menos 7 não aguentaram esse sofrimento e cometeram suicídio.
2) A Igreja Católica não pode demonstrar surpresa, mas sim culpa
Estes relatos de abuso na Igreja Católica são antigos, mas só início deste século foram mais agressivamente investigados pelos autoridades judiciais de diversos países e por jornalistas. Portugal ficou no fim deste longo percurso e infelizmente com comentários lamentáveis de elementos da hierarquia da Igreja. Por exemplo o bispo Manuel Linda disse em 2019 que uma comissão para investigar a pedofilia era tão útil como uma comissão para investigar quedas de meteoritos, afirmando que “se se destina, como foi divulgado, a recolher as queixas não se justifica pois até agora não tivemos nenhum caso desses, graças a Deus“. O mesmo bispo esteve envolvido numa denúncia de encobrimento de uma jovem de 14 anos: “Contei-lhe que, mesmo sendo menor, tinha um envolvimento com o padre Heitor. Ele [Manuel Linda] disse que a culpa era minha, que eu é que andava atrás dele”. Finalmente o mesmo bispo com relativo desprezo no final do ano passado (e quando já existia esta Comissão Independente) referiu que o abuso sexual de menores não é “crime público” e que não obriga a denuncia, algo grosseiramente falso. Estou a usar este bispo como exemplo, pois reflete bem o que tem sido o papel da Igreja e o que pensavam sobre estes casos de abusos: consideravam um “pecado menor”, davam mais importância ao perpetrador do crime (que resolviam com transferência de paroquia) e manifestavam um profundo desprezo pelas vítimas, frequentemente culpabilizando-as pelo sucedido. Ouvi nestes dias frases de elogio (!!) à Igreja por esta comissão, quando foi um processo em que procurou adiar ao máximo, sendo forçada a fazer esta iniciativa para evitar males maiores. São todos culpados aqueles que sabendo não denunciaram às autoridades policiais.
3) A Igreja Católica tem de fazer uma purga interna determinada e em caso de dúvida punir
Esta falta de perceção da gravidade do sucedido ainda permanece em grande parte da hierarquia da Igreja. Para além dos 25 casos entregues ao Ministério Publico, existirá uma lista de 100 padres suspeitos ou com crimes prescritos que vão receber este mês da Comissão Independente. Ouvi declarações do bispo José Ornelas a referir que: “Se há uma denúncia, deve haver uma investigação e depois esses casos são enviados para a Santa Sé”. Ou seja, vai existir uma tentativa de burocratização do processo de afastamento de funções dos perpetradores destes crimes, o que é totalmente inaceitável. Todos os casos suspeitos deverão ter como consequência o afastamento de funções dentro da Igreja e não só dos espaços onde podem ter contacto com crianças. Esta é uma das situações em que em caso de dúvida, deve-se afastar a pessoa. O clamor da sociedade por justiça é gigantesco e o mínimo dos mínimos que a Igreja pode fazer é afastar de funções todas as pessoas envolvidas em casos suspeitos.
Não existe muito que a Igreja possa fazer para minorar o sofrimento das vítimas que causou, embora algumas tenham exigido um pedido de desculpas público e formal. Mas deve de imediato pagar indemnizações aos lesados independentemente dos processos criminais que possam ou não existir.
4) O Ministério Público tem de ordenar uma investigação geral
Pior que a Igreja não ter levado a sério o problema de abusos sexuais, seria o Estado usar este trabalho da Comissão Independente como um ponto final nesta investigação e não como um ponto de partida. A Comissão Independente não tendo qualquer poder de investigação judicial esteve sempre dependente da colaboração da hierarquia da Igreja para o apuramento de factos. Como tal tem de ser lançada uma grande investigação sobre estes crimes, sem a característica mordomia, cordialidade e alguns casos subserviência que as autoridades públicas têm em relação à Igreja Católica. Pelo contrário deve ser uma investigação implacável, independentemente do cargo ocupado, seja de um padre, um bispo ou um cardeal.
5) Este é um abalo também para os fiéis católicos
Todas as vítimas eram fiéis do Catolicismo e viam no padre uma figura que representava a Igreja, alguém a quem deviam respeito, mas também alguém em quem podiam confiar como um exemplo a seguir. O desapontamento que tiveram com estes elementos da Igreja provocou também um abalo na fé. Vivemos numa sociedade cada vez mais laicizada, mas para muitos ter uma fé é uma parte essencial das suas vidas e dá-lhes um sentido para as suas vidas. Sentir que Deus faz parte e preocupa-se com as nossas vidas é algo que não querem abdicar. Este sentimento só pode ser compreendido por quem verdadeiramente tem fé. Os ateus, agnósticos ou para quem tem uma visão ritualista da religião não pode entender o abalo que este escândalo de abusos sexuais aos verdadeiros crentes, que ficaram com um sentimento de traição, em não compreender como muitos daqueles que os deviam guiar são afinal agentes do mal. Mas são estes leigos, que não querendo deixar a Igreja, têm a responsabilidade de forçar as mudanças necessárias, mesmo que o clero da Igreja não o queira fazer
6) O laicismo na sociedade ganha um novo impulso
O Estado português é formalmente laico, mas as sociedades podem não o ser. Uma tendência nos países ocidentais é para progressivamente as pessoas abandonarem as religiões como parte da sua vida. Em países com maior tradição religiosa como Portugal este processo está a ser mais lento, mas progressivamente nas gerações mais jovens está a tornar-se um sentimento mais dominante. Este escândalo de abusos sexuais vai dar mais um argumento aos que acreditam que a religião é algo por natureza algo negativo para a sociedade.
7) Este caso não pode colocar em causa o princípio de liberdade religiosa
Se compilarmos alguns comentários em redes sociais dos últimos dias vemos apelos a manifestações durante as missas, colar cartazes na Igrejas acusando-os de pedófilos, ou impedir o evento das Jornadas Mundiais da Juventude deste ano. Algum deste clamor é uma reação compreensível contra quem cometeu e encobriu estes crimes hediondos. Mas a liberdade religiosa é um direito humano fundamental e protegido pela nossa constituição no artigo 41 onde refere que “A liberdade de consciência, religião e culto é inviolável”. A indignação deve ser orientada para a exigência de justiça civil e criminal e não numa perseguição a quem segue uma religião.
Conclusão:
Ainda não sinto por parte da Igreja Católica uma reação proporcional aos crimes que cometeu. É verdade que está a fazer uma evolução face ao passado, mas ainda longe do que seria uma resposta mínima exigível. Temos de ter o nosso foco nas vítimas dando todo o acompanhamento psicológico de que necessitem e perseguindo implacavelmente quem cometeu e encobriu estes crimes, não excluindo indemnizações a serem pagas pela Igreja Católica. Vai existir um antes e depois desta Comissão Independente
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